Lá no início do caos da pandemia, eu estava com muita vontade de ter um encontro presencial das chicas. Eu tinha acabado de ler O peso do pássaro morto, e organizei um evento pensando na Aline como convidada. Não deu certo, como podem imaginar. A onda das lives estava só começando a se formar no Instagram. Resolvi me arriscar e agendar uma com a Aline. Depois de problemas técnicos na primeira tentativa, insistimos uma segunda vez. Ainda bem. Lembro da curiosidade que foi a primeira (de tantas!) live da Aline.
Seguimos contato: relembro algumas videochamadas que iluminaram noites pandêmicas, ou quando ela topou outras ideias: participação especial no clube do livro sobre a Pequena e noites inesquecíveis com um curso feito para as chicas — A voz literária que nos habita (quem estava?) — na época em que me aventurei nessa ideia.
Por fim, anos depois, na minha última ida ao Brasil, veio o nosso abraço presencial e as horas que voaram no café de uma livraria.
Em resumo: Aline é mesmo todo esse doce de pessoa e essa artista inspiradora e generosa que parece ser. Deixo vocês agora com as palavras dela e pequenos registros do seu ateliê, para espiarmos um tantinho da magia por trás da cortina.
Aline Bei &
um dedo de prosa poética sobre o tempo da escrita, o novo livro, memórias, palavras e sonhos
Aline, obrigada por topar estar aqui. É uma alegria hoje ainda estar de mãos dadas contigo, te celebrando por aí. Conta para a gente: quais foram as maiores mudanças da Aline escritora em 2020, lá naquela primeira live, para a Aline escritora hoje?
Obrigada, Paula. É realmente uma alegria estarmos juntas. Te admiro demais. Sobre as mudanças, é como se tudo estivesse no lugar onde deixei. Ao mesmo tempo me sinto outra, não me alcanço, e o que sou agora é o desdobramento contínuo do que sempre fui. As obsessões ainda são o modo como me aproximo da escrita. Sigo disciplinada, curiosa, inquieta. Pressinto uma paciência maior com o tempo do processo. E uma confiança nas mãos (as minhas) que ultrapassa o medo dos olhos (dos outros).
Já são quase quatro anos trabalhando no seu novo livro. Como você entende o tempo da escrita hoje, especialmente em comparação ao processo do Pássaro, o primeiro livro? Cada livro pede um tempo diferente?
Vamos acumulando experiências durante a escrita de um livro e elas servem e não servem para o próximo. No que mais serve é para dizer que o importante no processo de escrita é a escuta. Escutar o material que no começo fala a língua dos fantasmas e aos poucos, quando acreditamos o suficiente, vai falando a língua dos que vivem. Até que por fim fala sua própria Língua, tão viva e transparente que assusta, e nesse ponto, como escritora, é preciso aprender a arte de morrer sem matar.
Uma das coisas que mais admiro no teu trabalho é a força de vida que você dá às suas personagens, especialmente às mulheres. Percebo que você menciona frequentemente o corpo ao se referir à escrita. Como você explica essa entrega corporal? E como diria que experiência e vivência do seu corpo, como mulher neste mundo, moldam a tua escrita?
O corpo em sua dualidade de empecilho e portal é coisa posta para mim desde a infância quando o meu corpo era barrado ou atrapalhava outros corpos que precisavam da minha ausência para que pudessem ser sem mim. Minha mãe me fazia dormir muito. Eu era obediente e desaparecia por horas. Nas aulas de educação física, meu corpo era melhor no banco e sentada vendo outros correrem aprendi menos sobre pernas e mais sobre ter olhos grandes.
Quais palavras ecoam em você nesse processo de escrever e encontrar o novo livro?
Nesse livro que escrevo encontrei as palavras nos olhos do boi.
"Pressinto uma paciência maior com o tempo do processo. E uma confiança nas mãos (as minhas) que ultrapassa o medo dos olhos (dos outros).”
Li você falando em uma outra entrevista que a poesia é como um enorme pássaro sobrevoando o teu trabalho, mas que não chega a pousar totalmente. Linda imagem, aliás. O que mais você diria que sobrevoa? E o que pousa?
Das que sobrevoam: Os seios da avó de Ribeirão que ninguém herdou.
Das que pousam: Os banheiros que dividi.
Você participa de muitos eventos, inclusive marcando presença em alguns fora do Brasil. Teve algum evento em específico que foi mais marcante para você por algum motivo?
Tenho um carinho especial pelos clubes de leitura. E por todos os encontros que se dão em roda. Mais vale metade de um olho do que 27 nucas. Ainda que eu ame desesperadamente a cegueira das nucas.
Você tem inspirado uma geração de escritoras, participando de muitos cursos, workshops, saraus e afins. O que você diria para as leitoras que buscam abraçar a escrita e encontrar a sua própria voz?
Que continuem. Não há nada mais poderoso do que a continuidade.
O que você diria para a Aline criança hoje?
Amarraria seu cadarço, veja, não é porque está no banco que não pode cair.
Se você pudesse trocar cartas com uma escritora que já não está aqui entre nós. Quem seria? E o que você diria ou perguntaria na primeira carta?
Não, com Clarice não ousaria. Com Clarice, meu gosto é usar uns óculos escuros ao lado dos óculos escuros dela. Com Hilda mandaria um beijo pelos olhos de um cão. Agora com Lygia começaria dizendo que a inteligência é alegre por natureza.
Me conta uma saudade que mora em você. Tem cheiro?
Coxia. Parece com mudança, o cheiro. É como chegar com caixas numa casa que tem carpete.
🏷️ Dicas (da Aline)
Um livro que você não cansa de recomendar: Laços de Família, Clarice Lispector.
Um filme que te emocionou: A dupla vida de Véronique, Krzysztof Kieslowski.
Uma música que tem te acompanhado na escrita: The Night Bell With Lighting, David Lynch.
Obrigada, Aline, mais uma vez, por tudo.
E obrigada demais por ler e estar aqui, chica.
Um beijo e até a próxima,
Paula
Ai Paula você é maravilhosa. Obrigada por nos proporcionar isso
"(...) como escritora, é preciso aprender a arte de morrer sem matar". Quero essa frase num outdoor! Obrigada por nos trazer esse entrevistas cheias de ensinamentos!